Em 2004, fiz um curso de formação em educação social, com Tião Rocha, antropólogo e fundador do CPCD, Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento. Esse curso foi oferecido a mim pela ONG. Corpo Cidadão. Na época eu trabalhava na Associação Querubins, dando aulas de capoeira angola para crianças e adolescentes da Vila Acaba Mundo na zona sul de Belo Horizonte. Era a primeira vez que eu trabalhava junto a uma instituição.
Dentre tudo o que aconteceu nos trinta dias em que ficamos juntos, a prática mais usada foi a da bolinha. Nada muito complicado, a bolinha simplesmente representava a voz.
Na vivência que tivemos de uma semana no CPCD na cidade de Curvelo, reparei que o uso da bolinha era bem administrado. Não havia tensão caso existissem conversas paralelas. É certo que o projeto em questão tinha vinte anos de existência e tanto a pratica da bolinha quanto várias outras foram criadas ou resgatadas e praticadas por muitos anos até chegarem na devida serenidade para lidar com os imprevistos.
Desde o fim do curso, vários companheiros educadores começaram a usar a bolinha em suas atividades. Os resultados eram e são os mais diversos, mas nunca vi a tranqüilidade da equipe do CPCD quando o planejado não dava certo.
Em março de 2010, retomei o trabalho na Vila Fazendinha, como membro da equipe da unidade Nossa Casa Integrada da ONG. Corpo Cidadão. Por várias questões não pude continuar o trabalho que estava sendo realizado com um determinado grupo de educandos há cerca de quatro anos. O trabalho foi retomado com crianças de seis a doze anos da Escola Municipal Vila Fazendinha. Essas crianças nunca haviam freqüentado um projeto fora da escola. Eles estavam muito agitados. No primeiro dia foi muito difícil organiza-los para podermos conversar.
Dividimos as turmas e com um número de educandos reduzidos em cada sala, cada educador expôs ou tentou expor suas propostas para o ano. Eu não consegui. Não havia escuta por parte das crianças. Nem mesmo os instrumentos da capoeira foram capazes de atrair a atenção deles.
Aquele talvez fosse um bom momento para tentar usar a bolinha com uma finalidade bem definida. Organizar a turma. Foi pensar nisso e lembrar de uma questão levantada pelo Tião: “Organização educa?”. Mas naquele momento eu precisava de um mínimo de atenção dos educandos. Eu precisava de organização.
Pedi à minha filha algumas bolinhas de plástico que eu sabia que ela tinha.
No dia seguinte, chegando ao projeto, reuni minha primeira turma em roda, como de costume. Antes que houvesse dispersão, me levantei e fui pro meio da roda dizendo que eu era mágico. Um deles me perguntou com um olhar desconfiado: “Que mágica cê faz?”.
Digo que consigo tirar a minha voz de dentro de mim e coloca-la na bolinha e que eu só falaria quando tivesse a bolinha na minha mão.
Depois de algumas firulas, abracadabras e sinsalabins... a voz foi para bolinha. Com a bolinha na mão mostrei a eles que eu podia falar. Passei a bolinha para uma das crianças, falei, mas não saíram as palavras, fiz um grande teatro do mudo.
As crianças se empolgaram e depois de uma dezena de palavras mágicas, todas as vozes estavam na bolinha. Algumas crianças quiseram testar a mágica. Sem a bolinha eles falavam sem emitir palavras, já com a bolinha eles gritavam. Foi divertido e assim começamos a conversar em roda.
É claro que eu sabia que minha mágica não duraria para sempre. Por isso fizemos alguns combinados. O primeiro é que quando a bolinha estivesse no meio da roda a voz estaria com todos. O segundo é que de pouco em pouco em nossas conversas, mais bolinhas iriam aparecer, mais pessoas teriam a voz e quando todos tivessem a voz, a bolinha talvez não fosse mais necessária.
Com o tempo as conversas paralelas e os imprevistos começaram a acontecer e a cada dia voltava a ficar mais difícil a conversa.
Depois de uma noite mal dormida e com a paciência um pouco reduzida, decidi ter uma conversa séria com a turma. Sentamos em roda. Por estar muito sisudo, senti que as crianças ficaram apreensivas. Comecei a falar que tínhamos que entrar num acordo em relação à organização das aulas. No meio de minha fala, Marco Filipe, um educando de dez anos começou a falar junto comigo. O pontuei dizendo que a bolinha estava comigo e para minha surpresa ele tirou uma bolinha do bolso. Na verdade era um limão, mas era a voz dele.
Passei a observar as crianças e percebi que no que eles se propunham, eles se comunicavam na medida certa, às vezes agitados, às vezes agressivos, às vezes serenos, outras vezes dispersos, mas a necessidade de uma organização, naquele momento era minha, não deles.
Ricardo Avelar
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